quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mudanças que incomodam

Por José Antonio de Oliveira

Há alguns anos participei de uma reunião num belo sítio entre as serras de Minas, bem próximo a Belo Horizonte. Lindo o lugar! Casa colonial, sala espaçosa, muitos quartos, varandas em volta, piscina, jardim bem cuidado, pomar... Tudo estava perfeito... até que, num canto do quintal, vi um pequeno barraco, muito simples, coberto de telhas de amianto. Fui indagar. Era a moradia do caseiro. O responsável pela beleza e limpeza do lugar. Ele e sua família ficavam naquele barraco. Perguntei se não era muito quente, se não tinha goteiras quando chovia. Disse que sim.
Aquilo me chocou. Uma cena que nunca mais se apagou da memória e do coração. A casa era usada esporadicamente pelos proprietários. Ficava fechada. Mas aquela família não podia ocupar um quarto. Nem nos dias de chuva. Era gente pobre, sem escola. Podia estragar... Ah, só um detalhe: os donos da casa eram “gente de Igreja”.
Em minhas andanças pela vida, conheci também muitas empregadas domésticas que trabalhavam até mais de doze horas por dia. Sem carteira assinada, sem previdência, sem férias, recebendo menos de um salário. Sentar-se à mesa com a família? Nem pensar! Não podia misturar. Vi também muita gente passar o dia no sol, com enxada nas mãos, em condições semelhantes. Ganhando mixaria. E assim era com faxineiros, cuidadores e tantos outros.
Tudo isso revelava a chaga aberta da terrível desigualdade social que nos machuca e envergonha. Uns são mais gente. Outros são classe inferior. O chefe olha o empregado de cima; o empregado olha o chefe de baixo, usando uma comparação de Daniel Duclos, em seu artigo sobre Brasil e Holanda.
Nos últimos anos muita coisa tem mudado. Graças à luta organizada de muita gente, a um governo mais sensível aos pobres e às causas sociais, às ferramentas de participação popular, como as conferências e os conselhos paritários, à conscientização e defesa dos direitos humanos, essa distância vem diminuindo.
Participei diretamente de programas, como o Adolescente Aprendiz, que preparava jovens e garantia empregos. Bela parceria entre a sociedade civil e empresários. Acompanhei gente pobre e negra se formando em Medicina e Engenharia, graças ao Prouni.
Vi secretárias domésticas tendo suas carteiras assinadas e seu trabalho sendo regularizado e reconhecido. Pequenos produtores rurais garantindo a venda dos seus produtos e uma alimentação de qualidade para muitas escolas, creches, asilos e outras instituições, por meio do Compra direta. Programa que também exige a criação de associações ou cooperativas.
O “Bolsa Família” pôs dinheiro nas mãos calejadas de muitos. A esmola da cesta básica, que obrigava a pessoa a consumir o que se dava, cedeu lugar à liberdade de escolha. Não é o melhor caminho, mas é uma forma de garantir o mínimo a quem não tem condições ou oportunidades. E esse dinheiro tem suas vantagens. Rico gosta de depositar em bancos ou mandar para os ‘paraísos fiscais’. Pobre gasta na hora. Até com o que não precisa. Isso fez crescer em muito o consumo e, consequentemente, a produção. O dinheiro passou a circular. A economia cresceu e enfrentou a ‘crise’.
Minha irmã, que trabalha com salão de beleza, comentava: “muita gente ‘da roça’ passou a frequentar o salão. Uns chegam na sua motinha, bicicleta e até de carro”.
Isso incomoda a muitos. Para eles, programas de distribuição de renda e de inclusão social, como o Bolsa Família, são apenas pra deixar o povo preguiçoso. Na verdade, esses programas deram a quem nada possuía um pequeno poder de barganha. É como se o pobre dissesse: “sei que não vou morrer de fome. Então, posso exigir mais e não me sujeitar como escravo. Você pode até ter uma pessoa ao seu serviço, para assumir os trabalhos pesados ou fazer aquilo que você não quer. Mas vai ter que pagar por isso”.
É claro que esse período não tem sido um mar de rosas. Ao lado de tantos avanços sociais, surgiram muitas mazelas, desvios, corrupção. Cresceu a distribuição da renda, mas não da riqueza. Os banqueiros e especuladores continuam ganhando muito e explorando o trabalhador. A desigualdade social é vergonhosa. Muita verba que seria destinada a projetos sociais saiu pelo ralo ou engordou contas bancárias de gente sem escrúpulos. Mas uma coisa me chamou a atenção. Mesmo o governo sendo do Partido dos Trabalhadores, o presidente do partido, o tesoureiro e muitos dos seus figurões foram presos. Coisa antes inimaginável. De fato, algo estava mudando.
Outra coisa me inquieta. Quando os pobres eram explorados, mesmo assim respeitavam os ‘ricos’. Até os convidavam para ser padrinhos de seus filhos. Votavam neles nas eleições. Agora que a situação melhorou um pouco, grande parte da elite financeira e social sente-se incomodada, ameaçada em seus privilégios. Muitos não engolem um certo empoderamento dos pobres. Estão participando e questionando mais, cobram direitos, compram carros e deixam o trânsito caótico, muitos viajam de avião, ocupam as praias e shoppings. Rolezinhos, farofeiros, pagodes “tiram a paz”. É “caso de polícia!”
Mas o Ultraje a Rigor já havia profetizado bem antes: “Nós queremos estar do seu lado. Nós vamos invadir sua praia”. Os poetas são também profetas. E o Cazuza foi mais radical: “A burguesia fede. A burguesia só olha pra si. Vai haver uma revolução...”.


zeantonioliveira@hotmail.com

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