Por José Antonio de Oliveira
Há alguns anos participei de uma
reunião num belo sítio entre as serras de Minas, bem próximo a Belo Horizonte.
Lindo o lugar! Casa colonial, sala espaçosa, muitos quartos, varandas em volta,
piscina, jardim bem cuidado, pomar... Tudo estava perfeito... até que, num
canto do quintal, vi um pequeno barraco, muito simples, coberto de telhas de
amianto. Fui indagar. Era a moradia do caseiro. O responsável pela beleza e
limpeza do lugar. Ele e sua família ficavam naquele barraco. Perguntei se não
era muito quente, se não tinha goteiras quando chovia. Disse que sim.
Aquilo me chocou. Uma cena que
nunca mais se apagou da memória e do coração. A casa era usada esporadicamente
pelos proprietários. Ficava fechada. Mas aquela família não podia ocupar um
quarto. Nem nos dias de chuva. Era gente pobre, sem escola. Podia estragar...
Ah, só um detalhe: os donos da casa eram “gente de Igreja”.
Em minhas andanças pela vida,
conheci também muitas empregadas domésticas que trabalhavam até mais de doze
horas por dia. Sem carteira assinada, sem previdência, sem férias, recebendo
menos de um salário. Sentar-se à mesa com a família? Nem pensar! Não podia
misturar. Vi também muita gente passar o dia no sol, com enxada nas mãos, em
condições semelhantes. Ganhando mixaria. E assim era com faxineiros, cuidadores
e tantos outros.
Tudo isso revelava a chaga aberta
da terrível desigualdade social que nos machuca e envergonha. Uns são mais
gente. Outros são classe inferior. O chefe olha o empregado de cima; o
empregado olha o chefe de baixo, usando uma comparação de Daniel Duclos, em seu
artigo sobre Brasil e Holanda.
Nos últimos anos muita coisa tem
mudado. Graças à luta organizada de muita gente, a um governo mais sensível aos
pobres e às causas sociais, às ferramentas de participação popular, como as
conferências e os conselhos paritários, à conscientização e defesa dos direitos
humanos, essa distância vem diminuindo.
Participei diretamente de
programas, como o Adolescente Aprendiz,
que preparava jovens e garantia empregos. Bela parceria entre a sociedade civil
e empresários. Acompanhei gente pobre e negra se formando em Medicina e Engenharia,
graças ao Prouni.
Vi secretárias domésticas tendo
suas carteiras assinadas e seu trabalho sendo regularizado e reconhecido. Pequenos
produtores rurais garantindo a venda dos seus produtos e uma alimentação de
qualidade para muitas escolas, creches, asilos e outras instituições, por meio
do Compra direta. Programa que também
exige a criação de associações ou cooperativas.
O “Bolsa Família” pôs dinheiro
nas mãos calejadas de muitos. A esmola da cesta básica, que obrigava a pessoa a
consumir o que se dava, cedeu lugar à liberdade de escolha. Não é o melhor
caminho, mas é uma forma de garantir o mínimo a quem não tem condições ou
oportunidades. E esse dinheiro tem suas vantagens. Rico gosta de depositar em
bancos ou mandar para os ‘paraísos fiscais’. Pobre gasta na hora. Até com o que
não precisa. Isso fez crescer em muito o consumo e, consequentemente, a produção.
O dinheiro passou a circular. A economia cresceu e enfrentou a ‘crise’.
Minha irmã, que trabalha com
salão de beleza, comentava: “muita gente ‘da roça’ passou a frequentar o salão.
Uns chegam na sua motinha, bicicleta e
até de carro”.
Isso incomoda a muitos. Para eles,
programas de distribuição de renda e de inclusão social, como o Bolsa Família,
são apenas pra deixar o povo preguiçoso. Na verdade, esses programas deram a
quem nada possuía um pequeno poder de barganha. É como se o pobre dissesse: “sei que não vou morrer de fome. Então, posso
exigir mais e não me sujeitar como escravo. Você pode até ter uma pessoa ao seu
serviço, para assumir os trabalhos pesados ou fazer aquilo que você não quer.
Mas vai ter que pagar por isso”.
É claro que esse período não tem
sido um mar de rosas. Ao lado de tantos avanços sociais, surgiram muitas
mazelas, desvios, corrupção. Cresceu a distribuição da renda, mas não da
riqueza. Os banqueiros e especuladores continuam ganhando muito e explorando o
trabalhador. A desigualdade social é vergonhosa. Muita verba que seria
destinada a projetos sociais saiu pelo ralo ou engordou contas bancárias de
gente sem escrúpulos. Mas uma coisa me chamou a atenção. Mesmo o governo sendo
do Partido dos Trabalhadores, o presidente do partido, o tesoureiro e muitos dos
seus figurões foram presos. Coisa antes inimaginável. De fato, algo estava
mudando.
Outra coisa me inquieta. Quando
os pobres eram explorados, mesmo assim respeitavam os ‘ricos’. Até os convidavam
para ser padrinhos de seus filhos. Votavam neles nas eleições. Agora que a
situação melhorou um pouco, grande parte da elite financeira e social sente-se
incomodada, ameaçada em seus privilégios. Muitos não engolem um certo
empoderamento dos pobres. Estão participando e questionando mais, cobram
direitos, compram carros e deixam o trânsito caótico, muitos viajam de avião, ocupam
as praias e shoppings. Rolezinhos, farofeiros, pagodes “tiram a paz”. É “caso
de polícia!”
Mas o Ultraje a Rigor já havia profetizado bem antes: “Nós queremos estar
do seu lado. Nós vamos invadir sua praia”. Os poetas são também profetas. E o
Cazuza foi mais radical: “A burguesia fede. A burguesia só olha pra si. Vai
haver uma revolução...”.
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