domingo, 2 de dezembro de 2007

Dom Cappio: jejum em defesa do Rio São Franciso

Desde terça-feira, dia 27, o bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, está em jejum numa manifestação contra a transposição do Rio São Francisco, obra iniciada pelo Governo Federal e que faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), orçada em R$ 6,6 bi. Dom Cappio repete o mesmo gesto profético realizado em outubro de 2005 e que durou 11 dias, em Cabrobó (PE).
Na capela de São Francisco, em Sobradinho (BA), desde que começou o jejum, dom Cappio toma apenas água e se mantém firme na decisão de só voltar a alimentar-ser depois que o Governo paralisar a obra e arquivar definitivamente o projeto da transposição. Durante o dia, ele recebe as pessoas que, em grande número, têm ido prestar-lhe solidariedade e, à noite, preside a missa com a participação do povo.

Em entrevista hoje à Rádio Vaticano, o bispo franciscano explicou que só retomou o jejum porque o Governo não cumpriu o compromisso feito com ele em 2005. “Só encerrei o jejum que fiz há dois anos porque o Governo fez um compromisso de diálogo, mas ele não foi fiel a esse compromisso de abrir um amplo diálogo para que as universidades, as Ongs e todos que lutam pela vida do São Francisco pudessem dar opinião”, disse dom Cappio. “O governo se manteve surdo e impermeável a qualquer participação. Durante dois anos houve tentativas de diálogo e todas foram em vão”, completa.

Dom Cappio explica que órgãos do próprio Governo têm alternativas à transposição. “O Atlas do Nordeste prevê mais de 500 obras alternativas de desenvolvimento sustentável num preço muito menor que o valor da transposição, ecologicamente sustentável e socialmente justo” esclarece. “Sou contrário à transposição porque é um projeto que não respeita o meio-ambiente e não vai trazer água para o povo, mas para as grandes empresas”, justifica. Para ele, “a transposição vai inverter todo o sentido ético da água que é dom de Deus. Com esse projeto vamos transformar a água em objeto de barganha, de negócio. Isso eticamente é condenável”.

A respeito das críticas do presidente Lula e do ministro Gedel Vieira Lima que classificou o seu gesto de chantagem, dom Cappio diz que “são respostas muito nervosas, estressadas. Mostram que eles não estão com a consciência tranqüila diante do que estão fazendo”.

Ontem um médico examinou dom Cappio e ficou impressionado com sua disposição, segundo informou o membro da CPT, Ruben Siqueira. “Dom Cappio é inabalável”, disse Ruben. Na quinta-feira, dom Cappio escreveu uma Carta ao povo do Nordeste, explicando as razões de seu gesto. “Não estou contra o sagrado direito de vocês à água. Muito pelo contrário, estou colocando minha vida em risco para que esse direito não seja mais uma vez manipulado, chantageado e desrespeitado, como sempre foi”, esclarece.

Abaixo, a carta na íntegra.

Carta ao Povo do Nordeste

Queridos Irmãos e Irmãs Nordestinos, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e do Pernambuco,

Paz e Bem!

Quando encerrei o jejum de 11 dias em Cabrobó, há dois anos atrás, acreditei sinceramente que o governo federal cumpriria sua palavra empenhada no acordo que assinamos. Este acordo estabelecia um amplo, transparente e participativo debate nacional sobre o desenvolvimento do Semi-árido e da Bacia do São Francisco. Acreditávamos piamente que se esse debate fosse verdadeiro seriam esclarecidas as reais necessidades e potencialidades do Semi-árido, e ficaria evidente que a transposição não era necessária nem conveniente ao povo nem ao rio. As águas abundantes do semi-árido falariam por si. E os projetos alternativos existentes se imporiam, como as obras do Atlas Nordeste para o meio urbano e as experiências da ASA – Articulação do Semi-Árido para o meio rural.

O governo não cumpriu o prometido, abortou o debate apenas iniciado, ganhou as eleições e colocou o Exército para começar as obras da transposição. Movimentos e entidades da sociedade organizada intensificaram as mobilizações e os protestos, mas o governo se fez de surdo. Diante disso, não me restou outra alternativa senão retomar o jejum e oração, como havia dito que faria se o acordo não fosse cumprido. Para isso escolhi a capela de São Francisco, em Sobradinho – BA, bem próximo da barragem de Sobradinho, que há 30 anos passou a ser o coração artificial do Rio São Francisco, um doente em estado terminal.

Sei que meu gesto causará estranheza e incompreensões em muitos de vocês. Não os culpo por isso. Há gerações vem sido dito a vocês que só a grande obra da transposição “resolve” a seca. Entre os maiores interessados nela estão pessoas que vocês bem conhecem, pois são as mesmas que há muitos anos dominam e exploram a região usando o discurso da seca para desviar dinheiro público e ganhar eleições.

A seca não é um problema que se resolve com grandes obras. Foram construídos 70 mil açudes no Semi-árido, com capacidade para 36 bilhões de metros cúbicos de água. Faltam as adutoras e canais que levem essa água a quem precisa. Muitas dessas obras estão paradas, como a reforma agrária que não anda. Levar maiores ou menores porções do São Francisco vai tornar cara toda essa água existente e estabelecer a cobrança pela água bruta em todo o Nordeste. O povo, principalmente das cidades, é quem vai subsidiar os usos econômicos, como a irrigação de frutas nobres, criação de camarão e produção de aço, destinadas à exportação. Assim já acontece com a energia, que é mais barata para as empresas e bem mais cara para nós. Essa é a verdadeira finalidade da transposição, escondida de vocês. Os canais passariam longe dos sertões mais secos, em direção de onde já tem água.

Portanto, não estou contra o sagrado direito de vocês à água. Muito pelo contrário, estou colocando minha vida em risco para que esse direito não seja mais uma vez manipulado, chantageado e desrespeitado, como sempre foi. Luto por soluções verdadeiras para a vida plena do povo sertanejo – isso tem sido minha vida de 33 anos como padre e bispo do sertão. É, pois, um gesto de amor à vida, à justiça e à igualdade que nunca reinaram no Semi-árido, seja aí, seja aqui no São Francisco, longe ou perto do rio.

Agora mesmo é grande o sofrimento do povo não muito distante do rio e do lago de Sobradinho que, em função da energia para um desenvolvimento contra o povo, está com apenas 14%. Um projeto de R$13 milhões que resolveria o abastecimento dos quatro municípios da borda do lago espera desde 2001 pelo interesse dos governantes...

O São Francisco precisa urgentemente de cuidados, não de mais um uso ganancioso que se soma aos muitos que lhe foram impostos e o estão destruindo. Como lhes disse da outra vez, fosse a transposição solução real para as dificuldades de água de vocês, eu estaria na linha de frente da luta de vocês por ela.

O que precisamos, não só no Nordeste, é construir uma nova mentalidade a respeito da água, combater o desperdício, valorizar cada gota disponível, para que não ela não falte à reprodução da vida, não só a humana. Precisamos repensar o que estamos fazendo dos bens da terra, repensar os rumos do Brasil e do mundo. Ou estaremos condenados à destruição de nossa casa e à nossa própria extinção, contra o Projeto de Deus.

Senhor, Deus da Vida, ajude-nos! “Para que todos tenham vida!” (João 10,10).

Recebam meu abraço e minha benção,

Dom Luiz Flávio Cappio, Ofm.
Sobradinho - BA, 29 de novembro de 2007.

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